Marcou o código do cartão Multibanco: 0404. Quatro de Abril. Dia do nascimento do filho mais velho. Como não fica bem a um pai ter preferências explícitas por um ou outro exemplar da sua própria descendência, arranjou aquela maneira de o estimar secretamente no dia-a-dia. Enquanto esperava que a máquina lhe cuspisse os 100 euros em notas de 20, pegou no talão do cliente anterior, que tinha ficado à vista, amarrotado, em cima do teclado da máquina. Cinco euros e três cêntimos. Que porra de saldo!, pensou. O que é que se faz hoje em dia com cinco euros? Não dá para ir jantar fora, não dá para ir ao cinema... Olha, dá para comprar um maço de tabaco e ler o jornal...
Quando a máquina começou a vomitar o dinheiro, o formigueiro já instalado nos pés começou a subir freneticamente pelas pernas acima. Se cinco euros não dão para quase nada, os 100 euros que se preparava para agarrar dariam para mudar a sua vida.
Respirou fundo. Dobrou a esquina. Sabia exactamente o que fazer. Andava a preparar tudo há meses. Durante as noites de tédio, não pensava noutra coisa. Fechava os olhos e era a imagem do paraíso que via. Entrou na papelaria. Era preciso escolher bem o papel em que iria escrever a carta à Senhora Belmonte. A Carta Que Lhe Iria Mudar a Vida.
Passou os olhos e os dedos pelos diferentes papéis que havia na loja. Escolheu o mais óbvio, o mais simples. A carta, o papel branco que iria encher de sopros e segredos que a Senhora Belmonte nem imaginava existirem. Pagou e meteu-se a caminho. Não podia, claro, escrever tão delicada prosa em casa. Afastou-se daquele bairro, caminhou a pé uns quarteirões e escolheu a mesa mais recôndita do mais anónimo café das redondezas. Sentou-se, pegou na caneta dourada e escreveu em letra redonda e cuidada:
Cara Senhora Belmonte :
Bem sei que não se lembra de mim. Era eu uma criança quando a vi, a primeira e única vez que vi. Chamo-me Inácio. Era apenas um garoto tímido quando veio a casa dos meus tios, por alturas do nascimento do meu primo Guilherme. Mas eu lembro-me bem dessa tarde e era sobre isso que lhe queria falar, do que ouvi naquele escritório e que nunca esqueci, durante todos estes anos. Porém, não o queria fazer por carta. Porque o que me move são os sentimentos, peço-lhe que aceite encontrar-se comigo, recebendo-me em sua casa. Apanharei o primeiro avião que puder, assim que obtiver, de sua parte, resposta positiva, como espero que faça.
O seu,
Inácio Rodrigues
Acendeu um cigarro e estendeu levemente o braço, com dois dedos hirtos, na direcção do empregado que conversava pachorrentamente, encostado ao balcão. Voltou a ler o que havia escrito, remoendo a mesma indecisão que o assolava há anos e pensava ter abandonado. Dobrou cuidadosamente o papel, enfiou-o no envelope e guardou-os no bolso do sobretudo que nunca chegara a despir. Tomou o café de um só trago, deixou uma moeda, levantou-se, subiu as abas e enterrou o chapéu. A porta envidraçada era apenas uma memória distante, quando se apercebeu que a chuva e um cinzento baço desolavam toda a rua. Foi então que a viu, indefesa, serpenteando entre carros e charcos.
Sim. Era ela. Serpenteando entre carros e charcos. Agora não tinha que apanhar nenhum avião, não teria que esperar por mais nada. Ali estava ela, tão perto do meu corpo, tão longe do meu pensar. Que faço? Vou. Não vou. Digo “Olá sou o Inácio”. Digo “Desculpe donde a conheço?”. Tento que pareça um incidente? Que faço? E então eu, no meio de carros e charcos, estendo meu braço, toco-lhe e eis que ela, também entre carros e charcos, se me dirige o olhar, num instante de intensa importância. Digo-lhe por fim: Senhora Belmonte permita-me que lhe entregue este envelope que o Sr. Inácio Rodrigues lhe escreveu. As palavras saíram-me assim sem mais nada, sem pensar, sem elaborar.Ela mirou-me, seus olhos de régua e esquadro, e nem teve tempo de dizer nada, porque rapidamente tirei o envelope do sobretudo que nunca cheguei a despir e despedi-me com um aceno, serpenteando entre carros e charcos.
Carla Belmonte nem teve tempo de reacção. Apenas segurou no envelope enquanto aquele estranho se afastava na bruma cinzenta do nevoeiro e da chuva miudinha que entranha na roupa, na pele, nos ossos. Antes ainda de desaparecer na esquina, tentou um tímido chamamento, “Espere… Venha cá…”, mas não resultou e as suas pernas ficaram plantadas na calçada de pedra, escorregadia e desgastada dos passos do tempo. A cara do estranho pareceu-lhe vagamente familiar. Talvez não fosse estranho, mas estranho era terem-na encontrado ali, tão longe de sua casa na ilha da Madeira, até porque tudo tinha feito para estar ali incógnita. Carla Belmonte, apesar dos seus 39 anos, era ainda uma mulher de aspecto jovem mas que vestia discretamente, mais ainda quando o tempo convidava a roupas mais quentes e aconchegantes como este Outono. Estava no Porto para tentar descobrir o fio à meada da história da sua família, quem eram os pais que nunca chegou a conhecer, como tinham ido parar à Madeira e porque havia tanto secretismo no testamento do seu avô que só deveria ser lido na data do seu 40º aniversário que ocorreria no final do mês. Olhou novamente para o envelope, algo amarrotado pela força com que o segurava e correu para o carro alugado e estacionado na Rua Sá da Bandeira, bem perto da antiga Singer, onde então leu o seu conteúdo. Leu e releu as poucas linhas caligrafadas numa letra redonda e assinada por Inácio Rodrigues. O nome não me é estranho… pensou em voz alta enquanto ligava o Renault Clio branco.
(Esta é a continuação de uma ideia/história que começou na Fotosfera, continuou no Downtown, seguido de Blogueio Mental e continuada n’A minha pátria é a minha língua. Quem a quiser seguir que deixei aqui a sua intenção.)
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