2004/12/05

O Mestre dos Silêncios, por António Barreto

Hoje nem digo mais nada que não o que António Barreto, no seu artigo no Público de hoje, diz. E não é pouco...

Com a devida vénia, fica aqui reproduzido.

"O silêncio sempre foi considerado um atributo maior da política. O que deve decorrer do mistério que quase inevitavelmente dele resulta. Falar de mais é frequentemente considerado um erro. Falar pouco parece ser uma arte. Nunca falar é até arrepiante. Quem está calado deve estar a pensar. Tem seguramente muito para dizer ao mundo. Deve ser sábio. Estas ideias, superficiais, tanto estão certas como erradas. Mas os mitos subsistem. Quem não se deixava muito enganar por eles era o General De Gaulle, que escreveu nas suas memórias que nem sempre a admiração pelos esfíngicos se justificava. A sua experiência dizia-lhe que, por vezes, quando um desses seres se decidia finalmente a falar, a surpresa era geral, pois apenas diziam imbecilidades. Por isso é que, em verdade, o Mestre do silêncio é aquele que domina a palavra. E que a usa. Quando deve ser. Foi o que fez Cavaco Silva. Menos de uma semana depois de Santana Lopes o ter tentado aprisionar e diminuir, libertou-se do abraço homicida, limpou a face do beijo de Judas e, em cinquenta linhas de uma redacção quase infantil, destroçou a direcção de um partido e o governo de um país.

Este homem é um caso da política nacional. Desde o seu aparecimento que quase toda a gente se enganou. Foi desvalorizado por muitos, desprezado por alguns, posto em ridículo por bastantes. Denunciaram-lhe a falta de jeito, a má oratória, o aspecto crispado, a ausência de cultura humanística, a rigidez de raciocínio e a aversão pela política. Até o mau vestir, o feio penteado e o sotaque provinciano lhe foram criticados pelas classes ilustres de Lisboa, que só reconhecem valor aos do seu rebanho e que recorrem a indicadores ditos sociais, quando lhes faltam os políticos e os intelectuais. A sua ascensão, as duas maiorias absolutas, os dez anos de governo, a gestão da primeira década europeia de Portugal e a sua campanha eleitoral de 1995 estão aí para demonstrar que ele tinha trunfos e talentos que os seus adversários, do mesmo ou de outros partidos, foram incapazes de detectar. Igualmente de relevo é a década que passou afastado da política, em casa e na universidade. Poderia ter dito mil coisas, arranjado dezenas de empregos, presidido a vários organismos, aparecido constantemente nas televisões, apadrinhado os pobres, cortejado os ricos e desfrutado os prazeres de uma reforma dourada ou empenhada. Não o fez. Recolheu-se a um relativo e estudado silêncio. O que fez, não por maçada ou modéstia, mas antes meticulosamente, num exercício de contenção rara em Portugal, para assim maior valor dar às suas palavras. Cada vez que o fez (notoriamente com o "Monstro" do défice e, agora, o "governo dos incompetentes"), deixou a pátria incomodada, semeou esperanças, irritou interesses, incomodou os instalados e criou novas realidades. Tudo isto exige preparação, estudo atento das situações e das oportunidades, exame das circunstâncias e percepção fina dos momentos políticos e psicológicos. Pouco fica entregue ao acaso. Já quando da sua chegada ao pré-histórico congresso da Figueira da Foz, o que pareceu espontâneo, improviso e repentino era tudo menos isso.

É tímido e não terá efectivamente muito jeito para a retórica política habitual. Mas nada disso tem qualquer espécie de importância. Ou antes, tem, porque são aparentes deficiências transformadas em virtudes ou talentos. Em tempos de descaramento e de verbo excessivo, a timidez é uma qualidade. Como em tempos de corrupção e facilidade, a sua honestidade, que deveria ser um traço banal e corrente da nossa vida, é sinal de excelência. Da não política fez política por excelência. Da sua alegada competência profissional, fez autoridade política. E da sua crispação acanhada fez distância serena. Com a política, aprendeu a fazer política: em dez anos de governo, ficou outro homem. Percebeu que não fazer política era a melhor política de que era capaz e que ninguém o igualava nesse estilo. A sua circunspecção aumentou-o. Deixou naturalmente consolidar uma reputação inatacável de seriedade e autoridade. Sendo certo que os interesses económicos olham para ele com volúpia, a verdade é que as corporações e as empresas o receiam.

Quando foi Primeiro-ministro, deixou recordações. Durante um tempo, houve a impressão de que havia autoridade do Estado democrático. É verdade que descurou a justiça e a Administração Pública. Adiou a Segurança Social. E permitiu o desvario nas universidades e na reforma da educação. Além de nunca ter sabido conviver coma imprensa. Mas, do que tratou como prioridades (por exemplo as privatizações, os fundos europeus, as estradas e as infra-estruturas), foi eficiente e fez obra. E não são poucos os que, entre adversários e opositores, reconhecem os seus méritos e o respeitam.

Não são muitas as pessoas que se podem gabar de ter, com um só artigo de jornal, contribuído para dissolver um Parlamento e demitir um governo. Bem sei que toda a esquerda aplaudia ou reclamava; que, com o novo estilo de Jorge Sampaio, o gesto estava nas cartas; e que, na véspera da decisão presidencial, a Igreja e os empresários deram uma ajuda inestimável. Mas o seu escrito sobre os políticos incompetentes, de uma simplicidade a roçar a ingenuidade, teve certamente uma influência indelével. Daqui para a frente, tudo depende dele. Não está prisioneiro do partido, nem de organizações particulares. A sua reputação raramente esteve tão sólida. É legítimo que aspire a Belém, mas quem olha para ele pensa na fuga de Guterres, no abandono de Barroso e nos desastres de Santana. Não sei se consegue, de São Bento, organizar o país em segunda edição. Nem se, de Belém, tem a capacidade para presidir com competência e sem quezília. Mas sei que só ele, a partir de um ou do outro palácio, pode pôr o PSD em ordem. Já não é pouco.
"

Sem comentários: